O que se “comemora” dia 12 de outubro?

Camila Gervaz
6 min readOct 12, 2022

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No âmbito dos países hispanoamericanos, o dia 12 de outubro é um dia de resistência e reconhecimento do processo colonial.

12 de outubro: muito por discutir e nada para “comemorar”

No âmbito dos países hispanofalantes, o dia 12 de outubro não marca o dia das crianças (que em alguns países é comemorado no dia XXXX), mas um dia cuja narrativa esteve em disputa por muitos anos: o Día de la Raza, ou Día de la Hispanidad.

E o que “celebra” esse dia? Ou, o que se rememora nessa data? Simples! O marco da chegada dos conquistadores, ou, como algumas narrativas coloniais traziam: o encontro de duas culturas, a descoberta da América, o surgimento de uma nova raça…

Sim! É daí que vem grande parte dos nomes dado a esse dia: Día del Encuentro de dos Culturas, Día de la Raza, Día de la Hispanidad, Día del Descubrimiento, Descubrimiento de América, e, nos Estados Unidos, esse é o Día de Colón.

E qual o problema com tudo isso? Eu poderia escrever sobre vários aspectos, analisar cada um dos nomes e certamente continuaria escrevendo até o próximo dia 12 de outubro sem concluir, mas, para abreviar o seu, o meu, o nosso tempo, gostaria apenas de chamar a atenção para um ou dois aspectos e tecer meus comentários como estudante, como educadora, como linguista, como pesquisadora e como ser humano.

Posso sintetizar aqui duas considerações — entrando no modo analista do discurso, fique à vontade para pular para a próxima seção do texto — sobre esses nomes.

A Fiesta de la Raza ou Día de la Raza remonta a 1913 quando foi proposta uma data em “celebração” ao surgimento de uma “nova raça”, em uma referência à suposta miscigenação que surgiu do “encontro de duas culturas”. Daí também nomes como Día del Encuentro entre dos culturas, Encuentro de Dos Mundos, Día de las Culturas… E qual o problema disso? Bom, vários, mas o fato de que todos destacam um suposto encontro de culturas, ou seja, apagam o processo colonial, a violência e tudo o que fez e faz parte desse processo, por que… convenhamos, você não acredita que o processo colonial já acabou?

O “mais palatável” Día de la Hispanidad é nada mais, nada menos que um conceito franquista. Sim! Legalmente esse dia foi reconhecido em 1958, durante a ditadura franquista e se tratava da construção de uma imagem de uma nação imbatível, única e poderosa.

O Día de la Raza é o dia de união de todas as raças! Que bonito! (Contém ironia)

Se você acredita em coelhinho da Páscoa, Papai Noel, miscigenação, encontro de culturas e fim do processo colonial, acho que esse texto não é para você! Sorry! ¡Lo siento! Em sap greu…

Mas, então quem descobriu a América?

Eu não sou historiadora, por isso nem vou me atrever a discutir essa perspectiva, mas só gostaria de lembrar que o navegador genovês morreu sem reconhecer que ele tinha “descoberto” um novo mundo, e, nem precisamos comentar que o continente não estava vazio, não é mesmo? Como você descobre alguma coisa que já estava lá? Ou, nas palavras de John Leguizamo em seu monólogo “John Leguizamo e a História Latina para Idiotas” “é como se eu tivesse descoberto a sua carteira no seu bolso de trás e agora ela é minha, certo?”

Esse vídeo do canal curiosamente discute de maneira lúdica e acessível o povoamento do continente americano

Como educadora, pesquisadora e mulher latino-americana, não posso, não quero e não devo assumir uma perspectiva que não se comprometa com um olhar decolonial. Por muito tempo a narrativa oficial, a história única, foi a do colonizador, a visão dos vencedores e nunca a visão dos vencidos.

Como educadora e pesquisadora, nos espaços que circulo, sejam nas aulas, congressos, grupos de pesquisa ou de trabalho, formações docentes, trato sempre de trazer à discussão, de propor reflexões com colegas, com pares, com educandas/es/os sobre o processo colonial, sobre o nosso papel em desconstruir tudo isso, em assumir essas narrativas como sujeitos e não mais como meros objetos.

O dia 12 de outubro se tornou, felizmente (e com muita luta), um dia de discussão sobre o processo colonial. Um dia de resistência e de lembrar que a América não foi descoberta, mas invadida e saqueada. Não se trata de abolir a data, mas de produzir reflexões sobre essas narrativas em disputa. Sobre reconhecer esse processo e seus efeitos até hoje. É sobre reconhecer a luta e resistência dos povos indígenas, dos povos originários. E, nesse sentido, é interessante observar como muitos países avançaram — novamente a partir de muita luta, não por que alguém decidiu que seria bonitinho e legal — e propuseram outras formas de nomear esse dia como, por exemplo Día de la Resistencia Indígena (Venezuela), Día de la Resistencia Indígena, Negra y Popular (Nicaragua), Día de la Descolonialización (Bolivia).

E por que é importante nomear o dia de forma a destacar a resistência. Não é possível só refletir sobre isso? Talvez sim, mas prefiro recuperar aqui as palavras do mestre Paulo Freire:

Na verdade, o processo de libertação de um povo não se dá, em termos profundos e autênticos, se esse povo não reconquista a sua palavra, o direito de dizê-la, de “pronunciar” e de “nomear” o mundo. (…)

Só os colonizadores “têm” história, pois que a dos colonizados “começa” com a chegada ou com a presença “civilizatória” daqueles. Só os colonizadores “têm” cultura, arte, língua e são civilizados cidadãos nacionais do mundo “salvador”. Aos colonizados lhes falta história, antes do esforço “benemérito” dos colonizadores. São incultos e bárbaros “nativos”.

Sem o direito de autodefinição, são “perfilados” pelos colonizadores. Não podem, por isso mesmo, “nomear’se” nem “nomear” ao mundo que lhes é roubado.

(FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 173p. Capítulo: Genebra, 3 de fevereiro de 1976 (Carta n° 4), Camarada Teresa Mônica.)

Agora eu me pergunto, ou melhor, eu te pergunto:

Como estudante e/ou como pesquisador/a, o que você tem lido ou buscado a esse respeito? Nas suas leituras e estudos, você procura ler textos ou ver vídeos, filmes que trazem uma perspectiva decolonial? Quantas mulheres, pessoas trans, LGBTQIA+, indígenas, negras você tem citado? E no seu estudo/aprendizado de uma língua — aqui vamos falar de uma língua, porque é algo que faz parte da minha realidade e possivelmente por isso você chegou a esse texto — você já parou para pensar em quão hegemônica é essa língua que você estuda? Você já parou para pensar que nos territórios que essa língua é falada, talvez ela não seja a única língua? Você já parou para refletir sobre a diversidade linguística também nos espaços que você circula?

Como educador/a, o que você tem levado para o espaço da aula? Você problematiza os materiais dados? Você trata de incorporar referencias negras, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+ ? Você trabalha a partir da diversidade e para a diversidade? Ou ainda aparece como uma nota de rodapé, uma curiosidade?

Esse é um exercício diário, constante, mas muito importante e necessário. Espero que esse texto possa ter contribuido de alguma forma com essas reflexões.

Deixo aqui um vídeo que pode ser interessante para estudantes, educadoras/es ou curiosas/os:

Para saber mais, ou, com informações de:

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Camila Gervaz
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Written by Camila Gervaz

Feminista, educadora e vegana.

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